"Cruz Vermelha decreta Guerra Civil na Síria
O Comitê Internacional da Cruz Vermelha declarou ontem estado de guerra civil na Síria. A definição coloca civis e não civis sob proteção de leis internacionais"
O título acima obviamente queria dizer ‘declara’ (como está no texto) e não ‘decreta’. Declarar é afirmar aquilo que já existe; decretar é impor, estabelecer. A Cruz Vermelha não tem poder (muito menos o desejo) de impor guerra civil (pelo contrário). No caso acima, a matéria disse que a Cruz Vermelha declarou/afirmou que existe uma guerra civil acontecendo na Síria.
A Cruz Vermelha está sempre envolvida nos conflitos, mas o que é ela exatamente?
Bem, primeiro, não existe 'uma' Cruz Vermelha: há 188. Quase todos os países do mundo têm uma Cruz Vermelha (ou Crescente Vermelho, no caso dos países árabes). Elas são, tecnicamente, independentes entre si. Juntas, elas formam uma federação, onde cada organização de cada país é ‘independente’ em relação às outras (sendo responsável por sua própria arrecadação de fundos, administração e direção), mas coordenam seus esforços e, através de acordos e contratos, se submetem a alguns pontos comuns a todas 188 organizações nacionais (como o uso da logomarca, as políticas de atuação etc).
São essas organizações nacionais – que são ONGs legalmente registradas em seus países hospedeiros – que atuam quando há uma calamidade em algum local dentro daquele país, quando há necessidade de distribuição de alimentos ou medicamentos, vacinação ou coleta de sangue, por exemplo. Elas coordenam seus esforços através de um secretariado chamada de Federação Interação da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho, que não tem poder de mando sobre essas organizações, mas ajuda a coordenar seus esforços e atuações.
Mas a organização que disse que está havendo uma guerra civil na Síria não é nenhuma dessas organizações nacionais. É o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (em inglês, ICRC – International Committee of the Red Cross). Essa é uma outra organização, baseada em Genebra, e que atua nos eventos de grande magnitude.
A razão pela qual uma declaração do ICRC tem tanto peso (como demonstrado pela matéria acima), é porque antes de haver ONU (criada em 1945) ou Liga das Nações (criada em 1919 e dissolvida em 1946), já havia o ICRC, que também é uma ONG (criada em 1863) pela visão do empresário suíço Henry Dunant (que depois veio a se tornar co-ganhador do primeiro Nobel da Paz, em 1901), após constatar que os soldados feridos durante a Batalha de Solferino (no que hoje é a Itália) morriam porque não havia ninguém para cuidar deles.
A importância do ICRC não é apenas por ser a ONG (no seu sentido moderno) mais antiga ainda em existência (muito mais antiga que a maior parte dos países), mas porque ela está no cerne da criação de algumas da principais organizações internacionais, inclusive a própria ONU. O ICRC foi a primeira demonstração prática de que era possível haver uma organização internacional independente e imparcial que conseguisse atingir resultados tangíveis. Sem ICRC, provavelmente não teríamos ONU, União Europeia, OEA, Mercosul etc.
Mas a importância do ICRC se dá por outros três motivos. Primeiro, porque é uma instituição reconhecida por tratados internacionais. As quatro Convenções de Genebra de 1949, que foram assinadas por praticamente todos os governos do mundo, citam explicitamente o direito do ICRC de cuidar dos feridos. É a única ONG mencionada nominalmente em tratados dessa magnitude. A importância da declaração anunciada na matéria acima é justamente porque, a partir do momento que há uma guerra (ainda que ela não tenha sido formalizada pelos Estados envolvidos) essas convenções - que protegem tanto combatentes quanto populações civis - passam a servir como guias para a atuação tanto de outros governos quanto da própria Cruz Vermelha e outras organizações humanitárias.
O segundo motivo é porque o ICRC, embora não seja um país ou um governo, tem assento como observador na ONU desde 1990. Ou seja, ele não pode votar mas, na prática, tem o respeito conferido aos países membros. Esse é um status dado a poucas organizações, e normalmente apenas aquelas equivalentes a governos (como a Santa Sé, a União Europeia e a Organização para a Libertação da Palestina).
O terceiro, e mais importante, é porque, como uma instituição imparcial e independente, e para continuar imparcial e independente, o ICRC normalmente não faz comentários a respeito da situação política dos países nos quais atua. Apenas raramente ele faz comentários. Por isso, quando o faz, é porque a coisa é séria o suficiente para ela colocar sua imparcialidade e independência de lado (como fez em relação ao genocídio em Ruanda, em 1994).
PS: Do ponto de vista prático, o governo suíço (onde o ICRC está baseado e legalmente constituído) confere ao ICRC tratamento tão ou mais benéfico que aquele conferido às delegações estrangeiras, concedendo imunidades tributárias, inviolabilidade de propriedades e comunicações etc.
PPS: Apenas como curiosidade, até 2002 a própria Suíça, como a Cruz Vermelha, era apenas um observador na ONU.